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sexta-feira, 4 de junho de 2010

Política irracional

À luz do mais elementar humanismo, da racionalidade política e do bom senso só se pode desejar que no Médio Oriente Israel e a Palestina possam existir como Estados livres e independentes, mantendo saudável relação de vizinhança pacífica. A história das últimas décadas ensina não haver solução militar para o conflito israelo-palestiniano. É uma evidência. Por isso, o que se está a passar é ainda mais escandaloso e revoltante. O bloqueio ilegítimo e ilegal, por ser completamente desrespeitador das regras internacionais estabelecidas pelas Nações Unidas, é um terrível exemplo da irracionalidade de uma política estatal. É urgente derrotar esse tipo de políticas. Um colunista israelita, contrariando audazmente a irracionalidade do governo do seu país, escreveu: «Nós [israelitas] não estamos mais defendendo Israel. Nós estamos agora defendendo o bloqueio (a Gaza). O bloqueio por si só está a tornar-se o Vietname de Israel.» Estes cidadãos israelitas lúcidos, portadores de soluções políticas racionais e humanistas, têm que ser apoiados por nós, pelos nossos gritos de indignação. A impunidade de Israel não pode continuar. Fere os interesses de todos os Estados democráticos.
Convido os seguidores e leitores deste blog a assinarem a petição contra o ataque à frota humanitária e exigindo o fim do bloqueio ilegal a Gaza.
Assinar em
http://cdn.avaaz.org/po/gaza_flotilla_3/?vl

Mourinho filósofo

Surgiu recentemente no Facebook um movimento de opinião propondo o nome de José Mourinho para o lugar de Primeiro-Ministro. Depois da grande vitória na Liga dos Campeões (a que aqui se fez imediata referência) houve quem considerasse ser este bem-sucedido treinador de futebol o cidadão português mais competente para assumir a liderança política da Nação, de modo a libertar-nos de incompetências várias e correlacionados insucessos nacionais.
Embora sendo uma brincadeira bem-humorada, a proposta não deixa de conter uma ideia política séria e profunda, que por isso mesmo talvez mereça ser objecto de reflexão.
Quem ler o bom livro de Luís Lourenço a que já aqui fiz referência (v. “José Mourinho”), um estudo dedicado à análise do modelo de liderança do afamado treinador, perceberá de imediato que um traço essencial desse modelo é o anti-dirigismo, ou a não imposição. Isto é, o modelo de Mourinho é, de alguma maneira, de natureza filosófica. É critico-dubitativo e não impositivo. Como diz o sábio “mister” «Para mim liderar não é mandar, para mim liderar é guiar.» E acrescenta: «Quando tu mandas, tu castras. […] eu quero desenvolver capacidades quer ao nível individual quer ao nível colectivo.» Parece um filósofo a falar; uma espécie de António Sérgio treinador. Eu, enquanto profissional da filosofia que me prezo de ser, e imbuído do meu velho antidogmatismo sergiano, sempre assim concebi a liderança, em geral, seja ela desportiva ou outra. Em qualquer caso, toda a liderança é, em si mesma, fenómeno político. Este modelo é, por isso mesmo, a antítese do modelo de liderança do actual primeiro-ministro de Portugal. E logo este é que se chama Sócrates. Que desconcerto! Bem tinha razão o nosso Poeta ao fazer notar o desconcerto do mundo.
Com os olhos postos na acção política, e não no futebol, António Sérgio dizia sabiamente: «a boa política […] é uma arte de emancipar os homens; e estou na crença de que o grande político – como o grande pedagogo – é aquele que com a máxima simplicidade e humildade trabalha constantemente por se tornar dispensável; que é o que treina o povo para se governar a si mesmo, com o mínimo de intervenção de quaisquer políticos.» (Cartas do Terceiro homem, XIV).
Repare-se bem na expressiva imagem do político que é treinador de povos; não há só treinadores de futebol ou de outros jogos, há também treinadores de povos, sendo que alguns princípios de actuação parecem ter validade universal.
Mourinho treinador de futebol, inconscientemente (ou talvez não, porque foi discípulo de outro Sérgio, o Manuel), reproduz essa sagesse sergiana ao declarar enfaticamente e de modo muitíssimo acertado que o que faz falta, como dizia o cantor da nossa resistência, é «criar condições, em vez de dar ordens, e usar o poder de autoridade para conferir poder aos outros». Também esta, uma bonita forma de dizer. Lourenço, no livro de onde retiro as citações de Mourinho, mostra como esta visão da liderança sintoniza com a do cientista e pensador Fritjof Capra para quem a «liderança é facilitar o processo de emergência e, ao fazê-lo, promover a criatividade». Pessoalmente, como sabem os que têm tido a generosidade de me ler, sempre insisti neste ponto. Veja-se o que escrevi em Pensar a democracia (Editorial Inquérito, 1994, p.121):
O novo paradigma de uma política complexa deverá colocar o acento tónico na livre criatividade do sujeito singular, bem como na sua intervenção autónoma nos destinos individuais e colectivos. De onde releva a importância da educação/formação do sujeito cidadão em cuja base a autonomia deverá (e poderá) tender a sobrevalorizar-se em detrimento da dependência. Se não erro, só por esta via de enriquecimento das condições de possibilidade do exercício da criatividade livre se pode alcançar o nível da autêntica participação. Espaço para a génese de sistema político participado e não preponderantemente representativo, como acontece com as actuais democracias.
Partimos de uma brincadeira relacionada com o sucesso de um treinador de futebol, considerámos o perfil do modelo de liderança desportiva desse mesmo treinador, e isso conduziu-nos a uma questão profunda no espaço da filosofia social e política, ajudando-nos a pensar um aspecto capital na nossa realidade hodierna.
Como nos diz Luís Lourenço, em forma de conclusão sobre o modelo de liderança que se propôs analisar, tudo vai desembocar na mesma ideia central: «a de que a liderança eficaz facilita e fomenta a consciência individual – a sede da criatividade» (em Mourinho – a descoberta guiada, Prime Books, p.63).
Há aqui profunda matéria de reflexão filosófico-política. Pense o leitor nisto, porque é coisa útil e actualíssima. Mas pense bem.

quinta-feira, 3 de junho de 2010

Changeux em Lisboa

Uma grande figura da ciência e da cultura, o francês Jean-Pierre Changeux, um pioneiro da biologia molecular, discípulo predilecto de Jacques Monod, e um dos maiores neurocientistas, fez uma conferência em Lisboa no início desta semana. Centrou a sua atenção na hipótese que tem vindo a desenvolver de criação de uma neurociência da pessoa humana. Algo que permita explicar, num quadro de objectividade, coisas admiravelmente misteriosas como a universalidade do imperativo moral no ser humano, ser esse que, como sabemos, se caracteriza também, e ao mesmo tempo, pela variedade cultural que exibe e cultiva. Esperava-se – ou pelo menos esperava eu, contaminado por idiossincrático optimismo – que o Auditório 2 da Fundação Gulbenkian tivesse sido pequeno para albergar estudantes universitários de várias áreas, com destaque para as de biologia, medicina, psicologia e filosofia, ávidos de escutar directamente uma figura maior da ciência contemporânea e (coisa que não acontece com todos os cientistas de nomeada) verdadeiro homem de cultura universal – recorde-se que Changeux é também um especialista em pintura seiscentista e setecentista francesa, tendo dedicado especial atenção à fundamentação neurológica da experiência estética (Raison et plaisir). A realidade revelou-se outra. Os estudantes não se sentiram motivados a aparecer. Era mais notória a presença de profs. Não creio que tenham estado mais de 70 pessoas na sala. É certo que Changeux é um mau comunicador, e ao tornar-se menos jovem essa incompetência manifesta-se por vezes ao nível elementar da própria dicção. Mas não deixa de ser triste ver o auditório com tantas cadeiras vazias, significando que muitos jovens estudantes universitários perderam uma oportunidade rara de estar em directo contacto com uma grande personalidade. Estas oportunidades nunca se devem perder, porque são sempre enriquecedoras e ajudam a semear entusiasmos – essencial elemento da pedagogia.
Aproveito para recomendar a leitura do último livro de Changeux, obra em que ele reúne os conteúdos dos cursos que leccionou no Collège de France. Como ele próprio revela, «j’ai écrit ce livre à partir de la matière de mes trente années d’enseignement au Collège de France». Aqui fica a referência bibliográfica:
CHANGEUX, Jean-Pierre: Du Vrai, du Beau, du Bien – Une nouvelle approche neuronale, Editions Odile Jacob, Paris, 2008. (Preço em França: aproximadamente 28 Euros.)

Quando, em conversa pessoal, referi a Jean-Pierre Changeux a importância que um dos seus livros tinha tido na feitura de um dos meus -- o meu trabalho sobre a dialéctica objectiva no quadro das ciências da natureza (Dialéctica, ciência e natureza, Editorial Caminho, 1990) --, respondeu-me com um delicioso sorriso amplo e cristalino de menino contente, deixando-me, também a mim, satisfeito.