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quinta-feira, 31 de março de 2011

A democracia contra os cidadãos

Tomo a iniciativa de inserir neste blog uma parte (os parágrafos finais) de um artigo de opinião que publiquei no semanário Expresso em Abril de 2004; portanto, há precisamente sete anos atrás. Faço-o por me parecer que toda a minha reflexão dessa altura mantém total actualidade. Retirando o caso concreto que lhe serve de exemplo, o que escrevi em 2004 podia perfeitamente ter sido escrito hoje. Quero com isto mostrar que muito do essencial da crise que agora nos aflige e nos coloca à beira do abismo é o simples culminar de um conjunto de graves deficiências que já vêm de longe, mas a que ao longo de todos estes anos não se quis dar importância, favorecendo assim interesses vários solidamente instituídos e cristalizados, bem como práticas políticas muito tóxicas que nos conduziram ao ponto em que estamos: uma situação de asfixia política, económica e financeira.
Passo a citar o referido artigo de opinião, recordando, para um melhor entendimento, que em Março/Abril de 2004 o Governo (PSD/CDS) tinha dado início às obras de concretização do projecto faraónico da Cidade Judiciária, a ser edificada na bonita e pacata vila de Caxias, numa zona de vivendas e de urbanização de baixa volumetria:

[…] O caso da Cidade Judiciária levanta interrogações fundamentais sobre as supostas virtudes do sistema político em vigor. Convida-nos a reflectir sobre a democracia real, ou seja, esta que temos aqui e agora. Sim, porque, ao contrário do que nos impingem, há várias formas de democracia; e a democracia está longe de se esgotar nesta democracia. Esta, como se vai podendo ver, é cada vez mais – e na versão menos pessimista – uma semidemocracia tendendo a passos largos para a extinção do ideal democrático.
É verdade que ainda não foi inaugurado o Guantanamo lusitano, mas a colocação da primeira pedra da Cidade Judiciária, contra a vontade e os interesses da maioria da população (claramente expressos em assembleias e num abaixo-assinado), contra a vontade dos seus representantes autárquicos, contra a opinião de todos os partidos políticos a nível local, contra o parecer das organizações para a defesa do ambiente, contra a presidente da edilidade, constitui verdadeiro sinal de alarme convocador da nossa maior atenção.
[…] Clara manifestação de um muito preocupante recrudescimento da arrogância política, do autoritarismo, da intolerância e da arbitrariedade. Um grupo cada vez mais fechado de funcionários políticos, de cinzentões tecnocratas engravatados representando interesses corporativos ou lóbis, vai governando à revelia da vontade e dos reais interesses dos cidadãos. A crescente arrogância autoritária combina-se de forma despudorada com uma triunfante imoralidade, ambas concorrendo para reduzir ao mínimo a participação do cidadão, obstando a que ele interfira no processo de decisão colectiva.
Face a esta prepotência, quem se sentirá ainda motivado a votar nas próximas autárquicas, depois de ter assistido ao esmagamento dos seus representantes?
Com estes exemplos só se pode esperar o aumento da abstenção, evidente sintoma da agonia do sistema.
[…] sem confundir realidades distintas, a nossa inteligência não se deve inibir de averiguar em que medida o desemprego, o assédio moral em instituições públicas e privadas, a marginalização ou a exclusão social, não desempenham hoje o papel da tortura do sono ou de outras sevícias desse então [o Portugal da ditadura salazarenta]. […] Na actual situação em que o autoritarismo estatal coabita com a banalização da desonestidade, o pior inimigo chama-se indiferença, passividade, conformismo. Essa atitude de renúncia, sempre cuidadosamente semeada pelos poderes autoritários, tem sido contrariada pelos caxienses. O seu inconformismo materializa-se no movimento Salvem Caxias. Também por isto tem este caso projecção nacional: simboliza a convicção de que é possível, necessário e até urgente edificar um sistema político incentivador do exercício da autêntica cidadania, em que cada um intervenha na condução da sua existência.

Referência:
João Maria de Freitas Branco: “A democracia contra os cidadãos”, Expresso, edição de 3 de Abril de 2004, p.29 (opinião).

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