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quinta-feira, 17 de março de 2011

Os sofistas que nos (des)governam

Nas últimas horas escutei duas entrevistas concedidas por figuras cimeiras da governação local: a do primeiro-ministro à SIC e a do ministro da presidência à Antena 1. Duas peças de retórica política merecedoras de estudo para quem deseje compreender a realidade democrática em que vivemos.
Aí encontramos o político sofista em plena acção. Esse ser habilidoso na arte do disfarce, habilitado malabarista das misturas da mentira com a meia-verdade, especialista do ilusionismo verbal produtor e reprodutor de asserções melífluas postas ao serviço da sedução manipuladora. Quem pratica esta arte é gente que passou toda a sua vida adulta (e às vezes mais) mergulhada nos jogos de ilusão característicos dos corredores da política. Gente, por isso mesmo, experimentada nestas faculdades do engano, neste jeito, neste engenho de fazer parecer, ocultando o que é de facto. Capacidades que não se devem subestimar. Para poder proceder à exemplificação concreta seria necessário transcrever passagens das citadas entrevistas, coisa que excedia minha afrouxada paciência já bastante violentada durante os dois momentos de audição. Mas convido o paciente leitor que porventura ainda duvide desse, para mim, já exuberante ilusionismo discursivo a entregar-se ao esforço de análise das palavras cuidadosamente arquitectadas e bem buriladas pelos dois políticos em causa.
Para qualquer cidadão atento, politicamente inteligente, bem informado e experimentado nas lides políticas (no maquiavelismo, quase apetece dizer) o actual comportamento do primeiro-ministro e dos seus próximos obedece a um propósito claro: desencadear uma crise política em que o ónus da culpa (termo tão acarinhado na nossa cultura embebida de catolicismo) seja despejado em cima dos adversários e, em particular, do mais eleitoralmente temido, o PSD. Forma habilidosa de conseguir recuperar apoios para o inevitável confronto eleitoral antecipado. Forma astuta de disfarçar gravosas incompetências, revoltantes erros, responsabilidades pesadas, varrendo-as para cima do concorrente que assim aparecerá aos olhos do eleitor com menos atractivos. Só que os políticos sofistas como José Sócrates -- máxima contradição irónica que o destino nos reservou e que a mim, incondicional admirador do grande ateniense, tanto me dói (como pode um Sócrates, mesmo que pequeno, ser sofista?!), só que esses políticos sofistas sabem que o eleitorado não é maioritariamente composto por mentes atentas, politicamente inteligentes, informadas, experimentadas. Daí a utilidade do investimento sofístico. Logo a partir dessa base se começa a estruturar um terrível primado: o da manipulação; o do jogo da sedução manipuladora.
Ideia central a reter, que não me canso de enfatizar a cada hora que passa: estes políticos que hoje nos governam (ou desgovernam) argumentam com o objectivo central, quando não mesmo único, de vencer seduzindo e não com a finalidade de servir a verdade, fazendo da retórica um instrumento para o seu desvendar. Distorção trágica: a retórica política empregue, em vez de estar ao serviço da dilucidação, do descobrimento de verdades, em vez de se apresentar como meio adequado à procura da verdade, aparece antes como via de alcançar o triunfo, o sucesso, a vitória – valores agora supremos.
Estamos então perante aquilo que considero ser um dos mais graves problemas que nos atingem no mundo actual e que sinto, doído, não ser completamente estranho à filosofia que alguns pensadores do século passado lograram pôr em moda:

O hábito generalizado do desrespeito pela verdade.

Tremendo costume que no debate político-ideológico (e não apenas aí) promove a manipulação, a sedução manipuladora, o valor irracional dos jogos retóricos em detrimento da séria e fundamentada argumentação racional, único meio intelectualmente honesto de persuadir o outro.
O desrespeito pela verdade desnorteia e ilegitima a argumentação.

«We live at a time when, strange to say, many quite cultivated individuals consider truth to be unworthy of any particular respect.»
Harry G. Frankfurt, On Truth, p.17

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