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quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Os ensinamentos das Autárquicas


Se excluirmos, desde logo pelo seu especial significado simbólico, as primeiras eleições autárquicas, julgo dever-se concluir que as autárquicas do passado fim-de-semana foram as mais importantes que se realizaram em Portugal desde a fundação do actual regime democrático.

Elas representam um ponto de viragem. Porquê? Porque o seu resultado global traduz de modo inequívoco a vontade popular de acabar com a partidocracia. Uma partidocracia que se tem revelado essencial factor de empobrecimento da democraticidade do regime. Os cidadãos eleitores decidiram que o processo de representação não pode estar confinado à candidatura partidária, aos partidos políticos.

Mas a voz do eleitorado transporta declaração política ainda mais relevante e profunda: a não-aceitação do actual sistema de representação. Mais de 50% do eleitorado não se considera bem representado pelas candidaturas apresentadas. Os cidadãos reivindicam, através do voto, nova forma de representação que lhes dê garantias, permitindo-lhes controlar a acção efectiva do eleito durante todo o exercício do mandato e não apenas de 4 em 4 anos, no acto isolado do voto. Dito de outro modo, os cidadãos exigem uma democracia mais participativa e menos representativa. Ou seja, em que se afirma o primado da participação, com a subordinação da representação à participação.

Este último acto eleitoral efectuou-se em momento histórico muito singular, com o país mergulhado na maior crise económico-financeira do pós-25 de Abril e com um Governo que se ilegitimou através do completo desrespeito do programa eleitoral e governativo, bem como pelo recurso a uma governação sistematicamente anticonstitucional. Factos que, em minha opinião, marcam o fim da nossa 2ª República. É à luz desta forte singularidade que os resultados têm que ser lidos.

Analisemos então os resultados eleitorais.

Há dois aspectos essenciais a reter: em primeiro lugar, a denúncia do próprio acto eleitoral e a recusa de participar numa fraude política semelhante à que se verificou nas últimas legislativas, o não querer ser protagonista de uma farsa eleitoral; em segundo lugar, a condenação da partidocracia e do tipo de representação que lhe está associado.

Neste singular momento histórico em que seria natural haver um acréscimo de mobilização política traduzido na afluência às urnas, o que se passou foi exactamente o inverso. A abstenção aumentou de forma muito significativa, o mesmo acontecendo com os votos em branco e nulos (sendo que estes já não podem ser interpretados como mero engano). A abstenção aumentou em mais de 6 pontos percentuais. Os brancos e nulos correspondem a quase 7%. Em ambos os casos estamos a falar de um número superior ao da soma dos votos obtidos por dois partidos com assento parlamentar, os do CDS/PP e do BE. Em alguns concelhos, nomeadamente naqueles em que o resultado era mais incerto e se travava uma renhida batalha eleitoral, como em Oeiras ou Loures, a abstenção esteve acima dos 50% (ultrapassou os 53% em Oeiras); e num concelho tão importante como Cascais a abstenção foi de 62% e os votos brancos e nulos atingiram os 9%! Repare-se que os exemplos dados têm a “agravante” de serem do distrito da capital, região onde se situa o eleitorado com níveis de escolaridade mais elevados, sendo igualmente, pelo menos em teoria, um eleitorado, em média, politicamente mais informado.

Há ainda um outro aspecto muitíssimo relevante. A comparação entre a oscilação da votação nos partidos e a dos votos em branco e nulos. Apenas um partido obteve mais votos do que em 2009. Foi o PCP/CDU. É por isso a excepção que confirma a regra da perda de votos. Até o PS, partido dito vencedor, registou significativa perda de votos. Mas se olharmos para o número de nulos e brancos a regra é exactamente a oposta. Isto é, o eleitorado nulo/branco foi o que cresceu mais. Teve (como agora está em voga dizer-se) um colossal aumento. Passou de 2,9% para 6,8%! Mais que duplicou o seu peso eleitoral. Que partido pode gabar-se de ter tido tão grande aumento? Tão grande vitória? Sim, há uma peculiar vitória de quem quis afirmar a sua desconsideração pelo sistema. 344.566 Cidadãos deram-se ao incómodo de sair de casa para afirmarem nas urnas, expressamente, esse seu sentimento; mas muitos mais fizeram-no abstendo-se. A abstenção não pode continuar a ser olhada displicentemente como mero efeito de um desinteresse inculto e estúpido. Há nela outro peso político, pelo que não pode ser ignorada pelos analistas. E os nulos/brancos foram, na comparação com 2009, os grandes vencedores. Enquanto os partidos perderam milhares de apoiantes os nulos/brancos ganharam milhares e foram, nessa precisa medida, os vencedores destas eleições.

Como é possível que os comentadores de serviço não comentem isto? Como se pode aceitar que no debate parlamentar desta semana sobre as eleições nada disto tenha merecido a atenção dos deputados?

Estes números são, por si só, e de igual modo, demonstrativos da condenação eleitoral da partidocracia. Mas há mais: estas Autárquicas 2013 assumem-se como marco histórico no nosso percurso democrático também porque representam a entrada na ribalta política das candidaturas independentes, entendendo-se por tal a não vinculação a direcções partidárias. Importantíssima novidade. Símbolo maior desta mudança é a vitória de Rui Moreira no Porto. Acontecimento eleitoral não por acaso destacado em manchetes de vários jornais estrangeiros, como por exemplo o conceituado El País. Pela primeira vez, o poder local numa das mais importantes cidades do país deixa de estar na mão de um partido. Os números falam por si: o independente Rui Moreira ganhou com 39,2% e 6 eleitos para a câmara, enquanto o partido mais votado (o PS) ficou pelos 22,6% e com apenas 3 eleitos. A nível nacional os independentes obtiveram mais votos do que o CDS/PP e do que o BE: 344.566 votos, correspondendo a cerca de 7%. Só PS, PSD e CDU ficaram à frente dos independentes, sendo que estes, ao contrário daqueles, não marcaram presença em todos os concelhos. Mostrando não estar a perceber a mudança que se está a operar, um destacado deputado da esquerda parlamentar afirmou triunfalmente que a esmagadora maioria dos eleitores tinha votado nos partidos e não nas candidaturas independentes, depreciando assim os resultados obtidos pelas candidaturas independentes. Puro engano. A maioria do eleitorado, 61,12%, não votou em partidos.

Perante estes resultados e as claras mensagens que transportam deixa de ser legítimo realizar eleições legislativas na base do monopólio dos partidos. As candidaturas à Assembleia da República não podem ser exclusivamente partidárias. Significa isto que a lei eleitoral tem que ser alterada de imediato de forma a permitir candidaturas não submetidas ao controlo das cúpulas partidárias. Se a vontade popular for democraticamente respeitada, e tem que ser, a mudança da lei eleitoral tornou-se, a partir do escrutínio de Domingo passado, uma urgência ainda maior. A luta que tem vindo a ser desenvolvida pelo Movimento para a Democratização do Regime, bem como por outros agentes políticos e sociais, ganha agora ainda maior pertinência, uma vez que passou a estar legitimada pela vontade livremente expressa pelos cidadãos eleitores.

A nova lei tem que introduzir elementos de controlo da ética eleitoral impedindo a continuação da fraude eleitoral que atingiu o auge nas últimas Legislativas, com a completa dessintonia entre o programa eleitoral votado e o programa executado, anulando assim a utilidade do voto e destituindo-o de sentido. A “ arma do povo”, o voto, deixou de ter munições e deveio ineficaz. Embora formalmente legitimado por eleições livres, o actual Governo da República ilegitimou-se por efeito do total incumprimento dos pontos essenciais dos programas com que se apresentou ao eleitorado e depois ao Parlamento. Face a esta realidade assassina da democracia, perversora dos mais elementares princípios em que esta se estriba, realizar novas eleições legislativas só faz sentido depois de conferir ao cidadão garantias de que a farsa não se pode repetir. Como já em outras ocasiões de intervenção pública tenho vindo a afirmar, a nova legislação que, agora mais do que nunca, urge realizar tem que instituir um órgão de soberania (suprapartidário, um conselho de homens bons), eleito e articulado com o Presidente da República, com poder para avaliar o efectivo cumprimento dos programas eleitorais por parte dos eleitos, podendo despoletar um processo conducente à demissão daquele ou daqueles que notoriamente não honrem os compromissos assumidos perante os cidadãos no acto eleitoral. A abstenção não pode ser ignorada ou tratada como mera manifestação de desinteresse estúpido. A crescente abstenção, bem como o enorme aumento dos votos brancos e nulos é um relevante fenómeno político, expressão de indignação cívica perante o decaimento da democracia real.

Há que continuar a reflectir seriamente sobre os resultados das Autárquicas 2013 de modo a conseguirmos assimilar os importantes ensinamentos que elas nos legam. A melhoria da qualidade da nossa vida política passa por aí.

 

João Maria de Freitas-Branco

Caxias, 3 de Outubro de 2013