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domingo, 30 de novembro de 2014

EM ESTADO DE DESASSOSSEGO


Não creio que um Estado de Direito democrático possa ter grande longevidade quando a quantidade de suspeição relativamente à compleição ético-moral dos seus principais quadros responsáveis é aquela que temos observado, com crescente espanto e indignação, ao longo dos últimos tempos. Este risco de sobrevivência de uma conquista civilizacional é, só por si, extremamente preocupante. Mas não ficamos por aqui. Há preocupações acrescidas.

É igualmente inquietante e causador de perplexidade ver um vasto conjunto de personalidades do nosso meio político reagir à detenção à detenção do ex-primeiro-ministro José Sócrates centrando a atenção apenas em aspectos processuais ou nos formalismos jurídicos. Não se ergue aqui uma prioritária e essencial questão de natureza política, ética e cultural? A questão da face do regime e do Estado. Ou seja, a questão do asseio do rosto, da decência, da dignidade do regime e do Estado.

Como pode então um actual candidato a primeiro-ministro, o socialista António Costa, afirmar ser este o tempo da justiça, devendo os políticos permanecer em silêncio em relação ao caso? Então, em face dos últimos acontecimentos, não sentem os responsáveis políticos, todos eles, ainda maior urgência de vir a terreiro com medidas imediatas de combate à corrupção, de modo a estancar a tremenda hemorragia de imoralidade de que padece o regime e o Estado? Estávamos já perrante um vasto leque de indecências banalizadas, prolongadas no tempo, que vai da imoralidade legal da acção dos facilitadores até à corrupção na cúpula do Estado. Nas últimas semanas assistimos a um crescendo que culminou na detenção de um ex-primeiro-ministro sob a indiciação de prática de ilícitos da máxima gravidade.

No meio deste abalo, Mário Soares veio declarar que a detenção de José Sócrates “deixou os democratas imensamente preocupados”. Mas então não estavam já imensamente preocupados? Não havia já motivos de sobra para tal, nomeadamente o facto desse mesmo Sócrates, agora detido, ter governado a nossa Pátria durante mais de sete anos sob contínua suspeição de prática de ilícitos? Não era isso, só por si, motivo para imensa preocupação dos democratas?

Há uma óbvia e necessária presunção de inocência. Aceita-se e compreende-se que amigos de José Sócrates declarem estarem convictos da sua total inocência. É admissível que se levantem dúvidas relativamente aos métodos da justiça e até que se discutam as decisões por ela tomadas – particularmente a medida de coação aplicada. O repúdio do circo mediático e de um certo pseudojornalismo que se alimenta de fugas ao segredo de justiça (que é prática criminosa) é um imperativo ético. Mas não havendo sinais indiciadores de agudo estado de demência do juiz instrutor, impõe o mais elementar bom senso que todos acreditemos que a ordenação de detenção de um ex-primeiro-ministro, assim como a subsequente medida que lhe foi aplicada (a mais gravosa de todas as medidas de coacção), resulta do facto de o juiz decisor ter diante dos seus olhos, necessariamente, indícios muito fortes ou pré-provas da prática dos crimes referidos no comunicado oficial do Tribunal Central de Acção Criminal. Essa conclusão ditada pelo simples bom senso obriga a que se tirem imediatas ilações políticas. Como se pode afirmar, como hoje mesmo foi afirmado pelo ex-presidente da República Mário Soares, que este caso não tem “nada a ver com os socialistas” (leia-se PS)? Então José Sócrates não governou em nome do PS? Não foi indicado pelo PS para exercer o cargo de primeiro-ministro? António Vitorino, ontem, na SIC Notícias, com honestidade e frontalidade, afirmou que este caso tinha tudo a ver com o Partido Socialista, lesando a sua imagem institucional. Claro!

Como se pode então reduzir todo este complexo caso a uma “bandalheira”? Quem considera que tudo isto não passa de uma “bandalheira”, e mais não é do que uma “campanha que é uma infâmia”, está absolutamente descrente da honestidade da justiça portuguesa, dos seus magistrados, dos tribunais e das suas restantes instituições. Assustador! É o decretar da total falência do Estado de Direito que obviamente não pode existir sem justiça que tenha alguma decência. Mas mais assustador ainda é o facto de esta confissão de total descrença na nossa justiça ter saído não da boca de um qualquer cidadão anónimo, eventualmente desinformado, senão que da boca de um ex-presidente da República e actual conselheiro de Estado: Mário Soares – por acaso, também jurista. É de enlouquecer! Que fica o pobre cidadão comum a pensar? Como pode dormir, depois de uma tão alta figura do regime e do Estado ter dito publicamente que o Tribunal Central português é agente da bandalhice e está ao serviço de campanhas “orquestradas por malandros”, decidindo de forma desregrada, sem critérios, sem fundamentos? Que vai fazer o juiz instrutor Carlos Alexandre perante tamanha acusação à sua pessoa, pondo em causa o seu bom-nome? Que vai fazer o Tribunal Central de Acção Criminal depois de se ver assim atacada a sua idoneidade? Que vão dizer os partidos políticos? Que vai dizer António Costa, candidato a primeiro-ministro pelo partido vítima da “bandalhice” da justiça? Em crescente estado de desassossego, aguardamos pelas reacções.

Como podem pretender alguns altos dirigentes do PS, incluindo António Costa, que este não é um momento “nada difícil” para o PS? Estarei alucinado? Sou eu que não percebo nada de política ou este esconder o Sol com a peneira é gesto politicamente suicidário?

Se não estou alucinado e se ainda possuo alguma cultura e sensibilidade política, o que francamente me parece é estarem alguns socialistas a dar tiros no seu próprio partido, o que neste momento de acentuada fragilidade do regime e do Estado de Direito democrático, abalado por uma avalanche de acontecimentos gravíssimos, se me afigura assaz inconveniente.

A crítica que aqui endereço a esses responsáveis políticos do PS é feita em defesa do PS, pois mesmo não sendo eu militante deste partido, nem de nenhum outro, desejo ver os partidos da nossa democracia a funcionarem bem, a portarem-se decentemente, a darem exemplos de elevação. Coisas que têm escasseado bastante, para mal da nossa comunidade nacional.

Dizer que o PS está a viver um momento “nada difícil” é tornar o momento actual ainda mais difícil para o PS.
 
João Maria de Freitas-Branco
 

domingo, 9 de novembro de 2014

25 ANOS DEPOIS


O breve texto/depoimento sobre o fim do Muro de Berlim que agora aqui publico foi-me solicitado pelo jornal “I” para ser incluído na sua edição de ontem – uma vez que o jornal não se publica nos Domingos. A dimensão do texto resulta dos habituais constrangimentos editoriais. Aqui fica, no dia de hoje, dia de aniversário, para todos os que se interessem pelo tema. Mais tarde, apresentarei um esclarecimento complementar.

 

25 ANOS DEPOIS

 

Erguer fronteiras que dividam os humanos, gerando isolamentos, é gesto indesejável que serve a dependência em detrimento da autonomia.

A queda do Muro que verdadeiramente começou a ser construído em 1949, com a criação da RFA pelos aliados ocidentais, e não no dia da colocação da primeira pedra – facto deixado na sombra da história de modo a ocultar a co-responsabilidade dos EUA, da Inglaterra e da França (poderio capitalista) – essa queda, saudei-a, mesmo estando consciente de que iria pôr em risco a boa realidade por mim vivenciada no lado de lá do Muro, na Alemanha não-capitalista.

No discurso dominante, o uso do termo liberdade é limitativo, pois procura significar apenas um tipo de liberdade e ocultar outro: o que conheci na RDA, ou seja, a liberdade de não estar desempregado, de não passar fome, de não ter que esmolar, de poder viver em segurança, de ter reforma, de usufruir de ensino e serviço de saúde gratuitos. O Muro indesejável defendeu essa liberdade, mas aniquilou outras. Complexidades da humanidade…

Quando interrogados (em 1989) sobre qual era o maior problema que os afectava, a resposta dos cidadãos da RDA foi: não poder viajar para qualquer parte do mundo. Se não diz tudo, esta réplica diz pelo menos muito sobre a realidade socialista que existia. Que responderiam os cidadãos portugueses hoje?