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segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Syriza


Saúdo a histórica vitória do Syriza!

Na Grécia (pelo menos nesse país) acabou, finalmente, a monótona, estéril e já insuportável dança da alternância bipartidária, bem como o poder do “centrão”. Finalmente, também, a tomada de posse de um primeiro-ministro grego realizada como acto puramente laico, expurgada do inadmissível apadrinhamento da Igreja – uma mudança de que não se tem falado

O momento que vivemos é óptimo para determinar quem são os homens bons e quem são os maus. Sempre que ouvirmos alguém pronunciar frases do tipo “a renegociação da dívida é impossível e inaceitável”, “a ideia de que é possível um país não cumprir é conto de crianças”, ficamos logo a saber que esse alguém não pertence ao grupo dos homens bons. Porque só pode ser mau quem coloca a questão do pagamento dos juros da dívida do Estado grego acima da necessidade de solucionar a tragédia humanitária de milhares de seres humanos tombados no desemprego e a quem por isso foi retirado o direito à assistência médica.

Alexis Tsipras parece ser um homem bom.

Será que a Grécia vai ser outra vez o berço civilizacional, inaugurando um novo ciclo da história da civilização europeia?  
João Maria de Freitas-Branco
26 de Janeiro de 2015

 

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Os incómodos da liberdade de expressão

Afinal não são só os terroristas islâmicos que assassinaram jornalistas em Paris que são inimigos da liberdade de expressão. A cada dia que passa aparecem inesperados defensores da restrição da liberdade de expressão. Alguns líderes religiosos, como o clérigo muçulmano Angem Choudary, têm declarado com veemência a necessidade de estabelecer limites, desde logo porque não é aceitável que se desrespeitem as religiões e as suas divindades sobrenaturais, mesmo não havendo prova objectiva da sua existência. Disse ele o seguinte perante as câmaras da CNN e da FOX: «Liberdade de expressão não se estende a isso de se poder insultar os Profetas de Alá, seja qual for a nossa opinião sobre o atentado de Paris».

No essencial, o Papa Francisco reafirmou esta mesma ideia quando respondeu à pergunta de um jornalista sobre a liberdade de imprensa: «Você não pode provocar, não pode insultar a religião dos outros». Opinião que tem vindo a ser reproduzida por variadíssimos líderes religiosos e por outros comentadores. Por que será que isto me traz à memória a típica atitude dos Senhores das ditaduras e dos agentes de todos os totalitarismos que sempre consideraram e consideram ser uma provocação aquilo que não lhes convém que seja dito?

Fico confuso. Se estas individualidades religiosas (católicas, muçulmanas, etc.) têm razão no que afirmam, então dizer que os incréus vão arder eternamente no fogo do inferno ou que vão ser castigados sem fim, sofrendo infinitamente, não é ofensivo? Afirmar que aqueles que não seguem o caminho indicado por Deus vivem no pecado não é insultuoso para as pessoas visadas? Declarar que quem não acata a “Verdade” da minha religião é um ser imoral que labora no erro, devendo por isso ser punido com severidade, não é afrontoso? Obviamente que é! E sendo, que propõem então estas autoridades religiosas? Que se proíbam as instituições religiosas que produzem esses discursos injuriosos? Sendo assim, estarão a insurgir-se contra as suas próprias instituições e a negar a legitimidade do seu próprio afirmar. Ou será que não se pode insultar a religião dos outros mas pode-se insultar o ateísmo dos outros?

No mesmo registo das citadas autoridades religiosas, o jornalista e comentador Miguel Sousa Tavares apareceu ontem diante das câmaras da SIC a dizer que uma coisa é criticar, procedimento legítimo, e outra é ofender, algo que é inaceitável. Em sua opinião as caricaturas do Charlie Hebdo são exemplo de inadmissível atitude ofensiva, desrespeitosa, repugnante; e deu o exemplo de um cartoon publicado no Charlie Hebdo em que o Profeta Maomé é representado a ser sodomizado. Mas então a liberdade de expressão não é isso mesmo? Ou seja, não é a possibilidade de dizer coisas que chocam outros, que motivam desacordo, indignação, repúdio? Como se pode exercer a liberdade de expressão sem melindrar ninguém? Gostava que me explicassem.

Gostava também que as pessoas que pensam dever limitar-se a liberdade de expressão me explicassem o que entendem que se deve fazer contra os actos ofensivos de jornalistas satíricos como os do Charlie Hebdo. A receita dos terroristas islâmicos já conheço. Mas qual é a de pessoas como o também jornalista Miguel Sousa Tavares? Que propõe ele que se faça a uma publicação satírica como o Charlie Hebdo que tanto despreza? Que se crie nova legislação, permitindo que os tribunais interditem a publicação de jornais que veiculem opiniões passíveis de ofender alguém? Pena não nos ter dado a conhecer a sua proposta durante o surpreendente comentário de ontem na SIC. Fiquei com muita curiosidade. Até porque Sousa Tavares foi mais longe, acusando os agnósticos/ateus do Charlie Hebdo de serem tão fanáticos como os seus assassinos, os fundamentalistas islâmicos que perpetraram o acto terrorista do passado dia 7. Pondo em equação, fica assim: Wolinski e Co. = a irmãos Kouachi. Extraordinária opinião! Afinal os criminosos islamitas mataram outros criminosos, os facinorosos ateus. Talvez, por isso, como o ladrão que rouba a ladrão, mereçam cem anos de perdão. O Miguel não nos informou a esse respeito.

A gravidade do que ontem foi publicamente afirmado no Jornal da Noite da SIC justifica citação mais extensa. Aqui vai:

«Eu não sou Charlie Hebdo […] porque não subscrevo aquele jornalismo […] que não presta para nada. Nem sequer as caricaturas têm algum valor. O Charlie Hebdo é um jornal que espalha outra forma de fanatismo que é um fanatismo ateu. Não é crítica é provocação. O Charlie Hebdo não faz uma crítica faz provocações, faz ofensas. A liberdade de expressão não é igual à liberdade de ofensa. Não é! Não é! O Charlie Hebdo é uma forma de fanatismo[ateu] igual às outras [fanatismo religioso]. Acho que é inútil criticar a fé dos outros.» -- Miguel Sousa Tavares, SIC, Jornal da Noite, 19/1/15.

Eis aqui a opinião de um destacado jornalista, opinion maker, escritor reconhecido, filho de Sofia. Será que esta opinião concorre para a defesa da liberdade de expressão ou, pelo contrário, abre caminho à liquidação dessa liberdade essencial? Não semeará ela confusão sobre a linha delimitativa da liberdade de expressão, deslocando-a para terrenos pantanosos que fragilizam ? Não será este o discurso que convém aos inimigos da liberdade? E a fé dos outros, como a nossa, existindo, não se reflecte no comportamento social, não tem repercussões de natureza cultural, societal, política? Se tem, como me parece evidente, como justificar a inutilidade de a tomar como objecto de crítica? A crença, a fé habita um espaço estanque, isolado do mundo real, espécie de campânula espiritual hermeticamente fechada? É inquietante ouvir este opinar suscitador destas e de outas dúvidas. Como se percebe, nunca podemos dar como definitivamente adquirida uma conquista civilizacional. O combate em sua defesa é permanente. Jamais termina. Daí que, como faz notar Alain de Botton em Religião para ateus, talvez se devesse aprender com as religiões a utilidade, ou até mesmo a necessidade do agendamento diário do reafirmar, da releitura, da revisitação cíclica do que, de modo racionalmente fundamentado, se estabelece como valor civilizacional. Porque «para além de terem de ser transmitidas com eloquência, as ideias também têm de nos ser repetidas constantemente».

Perante o citado discurso do comentador da SIC, é bem curioso registar que algo do mesmo quilate foi dito por um personagem menor da nossa comunicação social, alguém que julgo ser habitual protagonista do lixo televisivo quotidianamente despejado sobre a população: «liberdade de expressão é uma coisa, desrespeito gratuito e egóico pelas mais altas crenças dos outros é outra»; «o Charlie Hebdo é libertinagem de expressão».

Esquisita convergência de opinião, esta, entre seres humanos que supúnhamos não serem do mesmo nível cultural, intelectual e moral. Saúdo a digna reacção do pivot do noticiário da SIC, Rodrigo Guedes de Carvalho que, visivelmente incomodado com o que estava a ouvir, teve o pertinente gesto jornalístico de solicitar clarificação: Achas então que os jornalistas do Charlie Hebdo se puseram a jeito? Atrapalhado, Miguel Sousa Tavares balbuciou um não, mas a negativa entrava em clara contradição com o que antes tinha afirmado e persistiu em afirmar, ou seja, a equivalência estabelecida entre os cartoonistas e os terroristas – na óptica do opinante, dois exemplos de fanatismo inaceitável.

Será que os familiares dos mortos do Charlie Hebdo vão sentir que esta opinião de um conhecido jornalista e escritor português ofende a memória dos seus entes queridos, vítimas da moderna barbárie? Será que os amigos, os admiradores, os leitores dos jornalistas assassinados vão ficar ofendidos? Suspeito que sim. E se for esse o caso, deverá ser restringido o direito de expressar uma opinião como a agora citada? A proibição pode ou deve ser o efeito imediato da declaração de um sentimento de ofensa? Que atitude se deve assumir? Excluindo a “solução” imoral do terrorismo, que devem fazer aqueles que se sintam ofendidos pela expressão pública de uma opinião, de uma tese, de uma teoria, etc.? Devem contra-argumentar ou silenciar quem dizem ofendê-los? Deve instituir-se um qualquer mecanismo de censura prévia? Ou será que no seio de um Estado de Direito democrático a avaliação do carácter eventualmente criminoso de um alegado insulto deve ser olhado à luz da Lei liberal, da legislação democrática, deixando aos tribunais a responsabilidade de acusar/condenar em função dos danos comprovados que possam ter sido causados? Quanto a Wolinsky, Cabu, Clarb, Tignous, alvos preferenciais das balas assassinas dos terroristas islâmicos, sabemos exactamente o que pensavam sobre isto. Esse pensamento, bem como a coerência do agir em conformidade com ele, custou-lhes a própria vida.

Já agora uma curta nota sobre o demolidor juízo valorativo expresso no comentário da SIC: em total contraste com a opinião do jornalista escritor, autor de Equador , os especialistas em caricatura e cartoon, dentro e fora da França (nomeadamente em Portugal), desde há muito consideram que Wolinski, Cabu, Clarb, Tignous são, ou eram, quatro dos melhores cartoonistas franceses deste nosso agitado tempo. O que, obviamente, não coage ninguém a ter de gostar; mas talvez aconselhe a não os classificar como fanáticos medíocres, como gentalha desmerecedora de respeito, como equivalentes, de sinal contrário, dos Chérifs e Saids Kouachis que por aí pululam aterrorizando-nos. 

Outras dúvidas me assaltam: como podem os crentes ter tão pouco respeito pelas divindades em que acreditam? Em que confiam, segundo dizem, com profunda e absoluta devoção? Então acham que os seus Deuses demiúrgicos, cada um deles considerado, pelos respectivos seguidores, como sendo o criador do céu e da terra, único criador do Universo, se deixam afectar pelos insignificantes rabiscos de uns mortais cartoonistas de um exíguo jornal parisiense? Então Deus não é grande? Então os Profetas não são grandes? Como pode a sua infinita grandeza coabitar com a pequenez mesquinha dessa zanga, dessa embirração com os modestos cartoonistas parisienses? E sendo providos de omnipotência e outros pasmosos poderes sobrenaturais, por que precisam essas divindades da ajuda de simples mortais para conseguirem pôr na ordem os jornalistas ofendedores? E não chegava o castigo eterno na profundeza dos infernos? O castigo pós-morte? Também sempre me causaram espanto os constantes pedidos de ajuda e protecção endereçados pelos crentes ao seu Deus; uma estranha suspeição relativamente à atenção divina, parecendo temerem que a divindade, dita omnisciente, possa estar, por algum motivo, distraída, ignorando as suas necessidades, urgências  e padecimentos. Não será isto também insultuoso? Outro insulto a Deus? Agravo, neste caso, insolitamente produzido pelos próprios adoradores incondicionais que tão melindrados dizem ficar com outros alegados insultos, provenientes das ímpias hostes ateias. Então afinal, descrentes e crentes, todos injuriam? Pobres deuses! Não percebo nada. Há um excesso de irracionalidade que tolda o meu entendimento. Ou será tudo efeito natural da única coisa que Einstein tinha a certeza de ser infinita? Ou seja, a estupidez humana.

João Maria de Freitas-Branco

20 de Janeiro de 2015

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Je suis Charlie


 

Je suis Charlie.

É necessário dar uma resposta. Resposta urgente da civilização contra a barbárie. Resposta em defesa dos valores republicanos da Racionalidade, da Liberdade, da Amizade tolerante ou da Simpatia, para utilizar sábia terminologia darwínica.

Mas a resposta, sendo urgente, não pode ser uma reacção alimentadora do ovo da serpente. Esse é um gravíssimo risco que de imediato corremos. Não pode ser uma resposta que nos vitime ainda mais, que redunde em renovado ataque ao que urge defender. Impõe-se que consigamos racionalizar os nossos sentimentos em face do atentado terrorista ocorrido ontem no coração de Paris, cidade Luz, das Luzes, e, por isso mesmo, ela própria símbolo maior da Razão emancipadora, símbolo da atitude que devemos, colectiva e individualmente, enquanto sociedade (comunidade civilizada) e enquanto cidadãos, assumir e cultivar ininterruptamente.

Escrevo estas linhas diante da notícia, acabada de chegar, de uma explosão de origem criminosa numa mesquita, em Lyon, hoje de manhã. Escrevo também ouvindo opiniões várias em favor de uma resposta policial, militar, e apoquento-me ainda mais. Será possível que esta barbárie islâmica abra caminho a outra, a do neofascismo ocidental? Será que os acontecimentos de ontem em Paris vão fortalecer a Frente Nacional de Marine Le Pene? É isso admissível?

A grande resposta, a resposta premente e absolutamente necessária tem de ser e só pode ser uma resposta CULTURAL. O terror não se combate com o terror. E o terror a que ontem assistimos guarda umbilical relação com o terror semeado pela política externa do ocidente (europeia e americana) no Iraque, na Síria, na Líbia, etc., com o terror da pobreza, da miséria, do desemprego, da indecência poderosa ou dos poderes indecentes e imorais, do desprezo pela cultura. No cerne de tudo está o menosprezo pela Vida. O mal, o grande Mal, estrutura-se em função e a partir do decaimento do Amor à Vida. O antídoto é a CULTURA – a Escola, a educação/formação, o conhecimento, o contínuo espalhar de factores de elevação moral e intelectual.

Je suis Charlie.

João Maria de Freitas-Branco

Caxias, às 11 horas do dia 8 de Janeiro de 2015