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quarta-feira, 10 de junho de 2015

Discurso


DISCURSO DE JOÃO MARIA DE FREITAS-BRANCO

NA

INICIATIVA DE SOLIDARIEDADE COM A GRÉCIA

Fórum Lisboa, 8 de Maio de 2015

 

 

Caros Amigos,

O que se está a passar na Grécia – após a vitória eleitoral do Syriza e o início de uma acção governativa contra a imoralidade política baptizada de austeridade -- não é assunto que apenas diga respeito aos gregos. Não. A luta deles é a nossa luta. É o combate dos homens de carácter que se recusam a aceitar uma sociedade em que o direito a viver de forma humanamente digna é vedado a milhões de cidadãos-pessoas. É uma luta em que se decide o nosso futuro.

Os gregos progressistas transportam, bem erguida, a bandeira da Esperança e do combate pela construção de uma vida decente, em que a igualdade se afirme em detrimento da desigualdade causadora de injustiça.

 

Quero aqui, de forma necessariamente muito sucinta, focar quatro aspectos: são três negações para uma afirmação.

 

Primeira negação: a negação dos políticos kitsch -- estes que temos no poder, aqui no nosso torrão, bem como em grande parte da Europa.

A essência do kitsch consiste na negação da Verdade, no existir na mentira. O governante kitsch é aquele que cultiva a cosmética política, a farsa, o ilusionismo ideológico, a arte da prestidigitação do verbo, valorizando o discurso publicitário, os slogans, a superficialidade lúdica, a infantilização. É um ser que tem horror à gravitas, advogando a acanhada cultura da facilidade. O político kitsch, chame-se ele Silva ou Coelho, é um agente da cretinização, da massificação mediocrizante, do abaixamento, da negação dos mais nobres valores da nossa civilização, da anulação da vida na verdade (do viver na verdade).

Por isso, é preciso varrer esse tipo de político da nossa sociedade.

Os gregos já começaram a varrer. Já iniciaram esse trabalho de limpeza. Obrigado! Obrigado Grécia!

 

Segunda negação: a negação da imoralidade; a negação da política divorciada da Moral.

Urge pôr termo a uma política que conduziu a sociedade a um estado de saturação moral por efeito da banalização da imoralidade – tendo tornado o corpo societal, assim como o indivíduo cidadão que o compõe, apático, incapaz de reagir, incapaz de dissolver novas agressões. É como na química, quando temos um líquido saturado e nele depositamos mais uma porção da mesma substância. Também nas sociedades há uma espécie de lei química, uma lei da saturação psicossocial que define um ponto a partir do qual o cidadão comum deixa de reagir a um novo escândalo ou agressão moral, seja a revelação de mais um acto de corrupção lesivo do interesse público, o vergonhoso elogio solene de um prevaricador feito pela boca do chefe do Governo, ou o simples despautério da edição de uma falseada biografia propagandística do primeiro-ministro.

A prioridade racional é o pagamento dos salários e das pensões e não o pagamento aos credores. Urgente é defender os necessitados e não os abastados. A prioridade é o trabalho e não o lucro privado dos grandes accionistas da banca; é dar emprego a quem não o tem, pagar salários justos a quem não os tem, dar às pessoas condições para que possam ter uma vida decente, verdadeiramente humana.

É isso a LIBERDADE. A autêntica.

Bento Espinosa, esse grande filósofo semiportuguês, dizia já nos recuados anos Seiscentos que a Liberdade é a capacidade de não vivermos dependentes do medo, da estupidez e do desejo fútil. Ou seja, se assimilarmos este lúcido pensamento espinosista, a Liberdade é precisamente o contrário daquilo que tem vindo a acontecer nas nossas vidas, na existência concreta dos seres humanos cidadãos de uma Europa em processo de decomposição e de decaimento ético-político.

Os gregos progressistas já iniciaram esta acção reconciliadora da política com a moral. Obrigado! Obrigado Grécia!

 

Terceira negação: a negação do aventureirismo político – de que o Syriza tem dado magnífico exemplo.

A compreensão racional e realista de que este não é o tempo da Revolução. Da grande ruptura que nos faça sair de um modo de produção necessariamente causador de Desigualdade, de injustiça social.

A defesa e preservação de um capitalismo regrado, devidamente regulado, que não seja o obsceno casino que agora de novo temos, trazido pela mão da imoralidade política do neoliberalismo à solta, são, neste aqui e agora, gesto mais progressista do que a tentativa de ruptura, por mais paradoxal que possa parecer aos olhos de muitos dos que pensam o mundo olhando-o a partir da esquerda. O tempo presente transporta ameaças tão graves que tornam natural a união dos homens de bom senso, das pessoas decentes e de carácter, independentemente do seu posicionamento no espectro político-partidário democrático – o que não implicando a anulação nem a perda de sentido da dualidade esquerda/direita não deixa, porém, de promover uma relativização conjuntural e um atenuar das contradições em torno de certos objectivos concretos que possuem valor civilizacional largamente consensual. O actual governo grego, na sua forma de coligação, é exemplo do que aqui advogo.

As ameaças que se perfilam diante de nós fazem com que neste momento seja muito perigoso desestabilizar o capitalismo. Porque isso pode facilitar o regresso da Peste, de que sabiamente falava Albert Camus logo após a vitória sobre o nazismo e o encerramento de Auschwitz, projectando um grito de alerta para as gerações futuras. (Deixem-me recordar-vos que, por pertinente coincidência, hoje mesmo, dia 8 de Maio, celebramos o 70º aniversário da histórica vitória sobre o nazismo). Pode abrir a porta ao grande Mal, ao Mal extremo conceptualizado por Hannah Arendt em gesto de reflexão autocrítica sobre o Holocausto. Sim, porque “o bacilo da peste nunca morre nem desaparece”. Permitam-me que deixe este alerta camusiano aos mais jovens, pois não me parece estarem ainda conscientes da proximidade da ameaça do Mal que se tem vindo a reestruturar.

Obrigado Syriza pelo exemplo de racionalidade e de sensatez política!

 

Três negações para uma afirmação; a seguinte:

A afirmação de sentido. A urgência de dar sentido à nossa existência é a questão central do nosso tempo. Porque, como avisava F. Nietzsche já no fim da sua vida criativa, o maior perigo é a ausência de sentido existencial; uma ausência que continuamente alimenta a pulsão de morte.

 

Na Grécia, as forças progressistas, agora finalmente no poder, têm sido exemplo de doação de sentido. Obrigado Grécia!

 

Para que os actos eleitorais não sejam uma farsa, um mero ritual folclórico de conservação do mesmo, actos esvaziados de sentido e inconsequentes enquanto factor de transformação; para que a Democracia não deixe de fazer sentido, para que não se extinga na espiral da auto-negação e sob a asfixia da chantagem do Poderio, das superiores instâncias europeias e de governos de países supostamente aliados, para que nada disto aconteça, é indispensável que a vontade do povo grego seja respeitada e que o governo do Syriza possa cumprir o programa sufragado pondo fim à indecente política de austeridade que empobreceu o país, humilhou o povo e destruiu o Estado social derramando injustiça.

O problema maior com que nos debatemos hoje não é de natureza financeira ou económico-financeira, como a todo o instante nos querem fazer acreditar. O grande problema do nosso tempo é de natureza cultural; é o problema da cultura.

Há crise financeira? Claro que sim; há crise económica? Sim, há; mas a crise maior é a crise cultural, traduzida numa perda geral de densidade e no primado da superficialidade, do prazer fútil, do imediatismo, da patetice alegre, do facilitismo, de tudo isso que gera abaixamento. É a crise dos valores civilizacionais e morais, causadora da tal perda de sentido existencial. O deficit que verdadeiramente nos deve desassossegar não é aquele de que diariamente nos falam os políticos e os economistas mediatizados, mas sim o deficit de elevação, o deficit de forças que, intelectual e moralmente, nos puxem para cima dando sentido ao nosso existir.

É aí que se trava a grande batalha decisiva: a luta em defesa da pulsão de vida contra a pulsão de morte.

 

VIVA A VIDA!

Viva o Povo grego!

Viva a solidariedade entre Portugal e a Grécia

 

João Maria de Freitas-Branco

Lisboa, 8 de Maio de 2015