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ABERTURA




Todos os melhores empreendimentos levados a cabo pela espécie humana ao longo da história, das artes e das técnicas rudimentares até as ciências e as tecnologias, estribam-se na capacidade por ela exibida de construir pensamento e prática racional, muito embora a razão nem sempre tenha existido na sua forma racional. O espantoso sucesso obtido pelo trabalho científico nas últimas quatro centúrias é, porventura, o mais exuberante exemplo do valor da Razão. Um sucesso que, para mais, se tem afirmado em verdadeiro crescendo.

Sendo isto algo dificilmente contestável face à excelência dos frutos doados pela frondosa árvore da ciência ou da técno-ciência, e devendo admitir-se ter a própria ciência produzido já prova clara da sua condição de actividade bem sucedida, é no mínimo surpreendente poder observar no dealbar do novo século XXI uma não menos crescente afirmação da anti-razão, do irracional à solta, da pseudociência e até, para completo espanto, da anti-ciência.

É por ser isso, essa animosidade perante o racional, uma realidade tão incontestável como a do triunfo da ciência que este blog existe. É uma outra forma, muito actual, de prosseguir a luta de uma vida: o interminável combate contra as manifestações do irracional – que bom será não confundir com a esfera do não-racional. O irracional, que se apresenta sob as vestes da superstição, do culto do mistério, do amor ao ininteligível, dos mitos, das fés religiosas, das crenças no sobrenatural, alimenta a encenação dos espectáculos encantatórios instituidores de um mundo crivado de demónios, divindades bem como de outros supostos agentes sobrenaturais. Um irracional tão sedutor, tão atraente que divide a cultura humana a ponto de gerar a coexistência do entusiasmo pela ciência com a inesgotável inclinação pelo irracional. Consequência de o ser humano mostrar ter imensa dificuldade em aceitar o insignificante estatuto cósmico que a ciência inexoravelmente lhe atribui. Severo e intolerado golpe anti-narcísico.

Parte-se aqui do pressuposto de que a história do auto-denominado homo sapiens sapiens tornou evidente o valor dos critérios, das concepções, das práticas filiadas na racionalidade. Aquilo a que, de uma forma geral, podemos chamar progresso civilizacional radica em grandíssima medida na Razão; ou seja, na intervenção racional e racionalizadora de indivíduos singulares e/ou de grupos societais (colectivos) que, através de continuado esforço opositor/contraditor da cultura da confusão, actuam contra a ignorância, contra a ilusão, a mentira, a estupidez e os «instrumentos de cretinização da nossa cultura», oferecendo resistência à desonestidade intelectual e a carência de elevação ético-moral.

Os principais problemas que afligem a Humanidade – a defesa do meio ambiente e a preservação da vida no Planeta, o subdesenvolvimento, a injustiça e a exclusão social, os conflitos bélicos (incluindo as novas formas de terrorismo), a fome, a persistência da exploração do homem pelo homem --, todos estes problemas centrais, só encontrarão soluções satisfatórias por meio do investimento de pensamento e acção prática racional que logre contrariar os efeitos da irracionalidade das superstições, das crenças, da cultura do sobrenatural.

Importa compreender que o irracional guarda relação profunda (essencial) com aquilo a que Espinosa chamou sistemas ideológico-práticos da obediência. O irracional, nas suas variegadas formas de manifestação, é instrumento ideológico ao serviço da cultura da confusão – a que promove a dependência, a limitação (redução ou anulação da liberdade), o mistério e a ocultação. Aos problemas do mundo actual, acima enumerados, não é alheia a activa presença do irracional, nomeadamente na sua vetusta forma de crença religiosa, de fé tradicional (crença num deus pessoal como o evocado pelas três grandes religiões monoteístas ainda em actividade). Algo que não se deverá confundir com a religiosidade não irracional, essa que, como Einstein bem compreendeu, coabita com a ciência e com a mais límpida racionalidade.

O cepticismo aqui advogado, filho da Revolução Científica bem como das Luzes, opõe-se à crença (à fé) sem nunca abdicar da militante defesa da liberdade do culto religioso, seja ele qual for. O pensamento tem que ser libérrimo; tudo é passível de ser criticamente discutido, de modo fundamentado. A limitação da liberdade de pensamento ou do culto religioso é, em si mesma, um gesto de traição à racionalidade, se bem que seja compatível com a racionalização (racionalidade fechada, dogmática) de que muitas vezes até é um dos mais refinados produtos.

Erros ou ilusões combatem-se com a argumentação racional que os desconstroi; nunca com a proibição ou com a tirania ideológica. Razão crítica e Liberdade são partes do mesmo todo – condicionam-se mutuamente. Para mais, a incompatibilidade teorética essencial da fé religiosa com a racionalidade científica critico-dubitativa (céptica) em nada inibe a relação profunda, não menos estrutural, da ciência com a religiosidade. Uma coabitação assertiva geralmente não entendida, rechaçada como concepção destituída de sentido. Daí que o racionalismo místico proposto por António Sérgio continue no limbo da incompreensão, enquanto formulação teórica sempre olhada com desconfiança por gentes das mais diferentes hostes racionalistas, não-racionalistas ou anti-racionalistas.

As minorias privilegiadas que sem o mínimo pudor promovem a espoliação de povos, nações e gentes, e que ainda não satisfeitas com o seu estatuto de excepção continuamente se privilegiam, encontram na irracionalidade do sobrenatural, da fé, da superstição, dos mitos, dos preconceitos o escudo protector e a lança com que garantem a preservação da sua condição de poderio. A denúncia das falsificações intelectuais geradas pelos mitos, superstições ou crenças tem, por isso, uma dimensão também política. Fazer essa denúncia é um dos objectivos principais deste blog que está aberto à colaboração de todos aqueles que, como o seu autor, pretendam participar no permanente combate da razão contra as investidas do irracional.



João Maria de Freitas Branco (JMFB)